Eu gosto de barco porque afunda

Há muito tempo atrás, quando eu era apenas uma menina, apareceu por aqui um guru, desses que convencem as pessoas de que elas estão fazendo tudo errado. Lembro que uma amiga minha voltou impressionada da palestra, replicando tudo o que o mentor havia pregoado.

E ela dizia com firmeza: “A palavra é ponderação. Antes de qualquer coisa, tenha ponderação. Pelo jeito o princípio que guiava o tal conselheiro era a ponderação. E, nas palavras da minha amiga, servia para tudo. Em qualquer tipo de dúvida, de trabalho, de saúde, emoção, basta ponderação. Se perdeu o emprego, brigou com a mãe, ou o namorado te traiu, ponderação duas vezes ao dia. Se te falta dinheiro, os seus relacionamentos não estão bem, simples… uma dose extra de ponderação.

Ao ouvi-la tão entusiasmada, eu realmente senti não ter ido à tal palestra. Poderia ter aprendido muito com o guru, principalmente, o significado da palavra ponderação. Que, até aquele momento eu só conhecia do dicionário. Isso porque, na minha vida, nunca fui muito de cultivar a cautela.

Anos mais tarde eu abro uma aula do Amir Klink com instruções expressas para sobreviver na pandemia. E a primeira frase que ele diz, ainda in off, foi: “Eu gosto de barco porque AFUNDA”. Aquilo me chocou. Talvez porque eu tenha ouvido durante a vida inteira as pessoas dizerem exatamente o contrário. Que eu devia ser mais calma, pensar mais antes de dizer ou fazer qualquer coisa, ter cautela em meus relacionamentos.

E vou confessar. Eu sempre achei que essas pessoas estavam certas. Assim como acreditava que a minha amiga e o guru dela estavam certos quando diziam que a chave do sucesso era a bendita ponderação. Mesmo que em 90% das vezes eu tivesse agido exatamente o contrário do que pregavam, eu sempre confiei que os conselhos das pessoas que me rodeavam eram os certos, os mais adequados, levassem eles ou não, aonde eu queria chegar. Por acreditar, dei a elas o direito de definir como extremamente negativa uma faceta importante da minha personalidade.

Mas aí a frase do Amir Klink foi como um interruptor de luz na minha consciência. E eu finalmente compreendi. Entendi a distância que separava os discursos que eu ouvia da minha essência. E, de quebra, da realidade que eu criei pra mim. De quantas coisas eu teria me privado se tivesse desenvolvido essa tal ponderação? Onde eu estaria vivendo se tivesse me encolhido em função de ser mais equilibrada? E quantos sonhos eu teria engavetado, se tivesse pisado no freio antes de cada decisão importante da minha vida?

Hoje eu tenho certeza. Não teria chegado a lugar algum, se tivesse a cautela como companheira de viagem. Assim, como não chegarei a lugar nenhum se acreditar que preciso ser mais ponderada, daqui pra frente.

Informações processadas, resta olhar pra trás com orgulho e seguir adiante. Amir tem razão. É preciso amar o barco, porque ele afunda. Se você cometer um deslize, ele afunda. Se remar sem constância, ele afunda. Mas isso não quer dizer que você precisa afundar com ele. Pode se agarrar no leme, aprender a nadar, seja o que for. Mas jamais, jamais mesmo, deixar o barco ancorado. Porque a maior verdade da vida é que o barco parado também afunda. Carcomido, enferrujado e tomado por algas. Sem enfrentar o mar, sem história. E, mesmo assim, afunda.

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